[ESPECIAL] A pressa que não nos deixa existir

Viver com pressa

 

A tecnologia tornou possível a nossa evolução. Entendendo-a, de acordo com o dicionário, como um conjunto de princípios científicos que se aplicam aos diversos ramos de atividade, podemos retornar aos primórdios da história da humanidade, quando dominamos a técnica da agricultura e, então, fomos capazes de nos instalar em apenas um lugar, sem mais aquela necessidade de pular de canto em canto à procura de recursos que pudéssemos desfrutar até o esgotamento. Dominamos também a domesticação de animais, sendo então desnecessário que tivéssemos que sair em aventura pela selva à caçada de alimento. Sem desconsiderar a técnica do fogo, que foi um grande avanço em nossa luta pela sobrevivência contra feras famintas. E por falar em sobrevivência, também aprendemos a produzir nossas armas que serviram para a nossa defesa e também ao nosso ataque. E esse conhecimento, com o passar dos anos, foi ficando cada vez mais aprimorado e refinado. Esse conhecimento acumulado nos permitiu que hoje, depois de milhares de anos de evolução, tivéssemos um conforto que nos tempos mais remotos eram inimagináveis. A tecnologia se propagou e ainda se propaga, de maneira que a cada dia surge uma novidade que nos deixa de queixo caído. Hoje o mundo cabe na palma da nossa mão. Hoje, do conforto do nosso sofá aqui no  Brasil, conversamos com aqueles amigos tão especiais que se instalaram no Japão. Hoje o céu não é mais o limite e Marte não é mais uma possibilidade, mas uma realidade. E por certo que num breve amanhã as fronteiras do Universo, se assim existirem, serão enfim conhecidas. Contudo, todo esse avanço que já salvou vidas e ajudou a mudar histórias, também tem servido para a nossa própria ruína. A vida tem se tornado mais rápida. E tem exigido de nós uma velocidade de resposta às suas demandas cada vez maior. E nessa de apenas acompanharmos os avanços e as novidades sem qualquer postura reflexiva, a gente acaba se entregando aos imediatismos de uma sociedade cada vez mais superficial, banal e, como apontaria Bauman, extremamente líquida. As coisas não são mais apreciadas a partir de seu significado e sua importância. Tudo se tornou obsoleto. Até nós, que nos achamos tão especiais por termos dominado o mundo, temos nos tornado ultrapassados e antiquados: nossos parentes robôs já acenam sobre o futuro...


Passos apressados


É claro que não vim aqui para criticar a tecnologia ou seus avanços. Seria muito ingênuo da minha parte apontar apenas seus defeitos, mas também seria de uma falta de criticidade tremenda se eu pensasse que ela é toda maravilhas. Porque não é. Estamos muito acostumados e separarmos as coisas em dois grupos: ou elas são boas ou elas são más. E isso é uma postura bastante infantil e imatura diante de assuntos complexos que exigem uma racionalidade maior. A tecnologia não é boa nem má. Ela apenas faz parte da realidade. E como tudo o que faz parte da realidade ela tem suas vantagens e desvantagens. Agora a forma como ela influenciará em nossas vidas é de responsabilidade nossa. E digo isso porque já fomos tremendamente beneficiados por esse acúmulo de conhecimentos: doenças foram erradicadas; se a fome existe, apesar da abundância, é por causa da ganância; as distâncias foram surpreendentemente encurtadas; e, como eu disse antes, nem o céu pode continuar sendo considerado como limite porque já o ultrapassamos. E é graças à tecnologia que neste momento estamos tendo a oportunidade de refletirmos sobre a vida. Ela tem ajudado muitos a ganharam a vida a partir de suas transformações. Mas o fato é que ela também tem feito tantos outros perderem sua liberdade, jogarem fora sua humanidade, deixarem de lado a oportunidade de passar por esse mundo semeando sementes que dariam origem a árvores robustas que serviriam de refrigério a alguém em um dia de opressor calor. Digo isso porque graças aos avanços tecnológicos não foram apenas as distâncias que encurtaram, o tempo também se encurtou, e o que deveria ser benéfico acabou se revelando trágico.


Se antes tínhamos que esperar semanas para que a nossa carta fosse lida por aquele parente querido que morava a milhares de quilômetros de distância e esperar mais outras tantas semanas para que sua resposta chegasse até nós, hoje uma mensagem pelo WhatsApp resolve o problema. Se antes tínhamos que ficar ansiosos pela próxima consulta para sabermos o resultado dos exames, hoje com alguns poucos cliques baixamo-los em nosso celular quase que no mesmo dia em que foram realizados. O tempo que antes era uma exigência, hoje pode ser contornado de diferentes formas. E é claro que isso não é de todo ruim. Economizamos tempo em assuntos corriqueiros e, assim, podemos empregar aquele que nos resta em coisas mais importantes... Ou ao menos deveria ser assim. O fato é que estamos constantemente apressados. Essas facilidades da vida nos deixaram mal acostumados e pensamos que na realidade, fora das telas virtuais, as respostas que esperamos nos serão dadas em frações de segundos como acontece nos resultados das buscas que fazemos no Google. Mas isso não é possível. E não é possível porque a vida tem o seu próprio ritmo e a sua própria forma de acontecer. Não dá para trazer um recém-nascido ao mundo hoje esperando que amanhã ele já se torne um adulto apto ao trabalho. Há um processo. Aquele recém-nascido precisa aprender a sentir o mundo, a conhecer o ambiente ao seu entorno, a resolver estágios do desenvolvimento que o deixarão preparado para os desafios futuros. Na vida real, longe das facilidades da vinda online, as respostas não são imediatistas como gostaríamos, porque na vida real, diferente da vida online, as coisas não são tão superficiais quanto pensamos.

Redes sociais e vida apressada


E nessa de querermos que as coisas aconteçam o mais rápido possível, a gente quer que a vida tenha uma velocidade rápida o bastante para que não tenhamos tempo de sentir as dores do existir. Parece que estamos sempre preocupados por alguma coisa. É como se o futuro fosse mais importante do que o presente. Mas desconsideramos o fato de que o ontem e o amanhã são ilusões. Tudo o que importa é o hoje. De maneira que de nada adianta eu ficar preso pelas angústias do passado, nem pelas ansiedades do futuro, porque tudo o que tenho para fazer a vida acontecer é o momento presente. Mas, dentro de uma sociedade líquida, constantemente insaciada e viciada em incessantes novidades, o porvir sempre parece mais interessante que o agora e é por isso que ansiamos amargamente para que o relógio avance mais depressa. O que é contraditório da nossa parte. Porque dizemos tanto que tememos a morte, que temos medo do fim, que não queremos partir dessa Terra de jeito nenhum... Só que ignoramos o fato de que querer que a vida passe mais depressa é querer que a morte chegue mais rápido. A doutora Ana Cláudia, que gosto muito de acompanhar, certa vez escreveu algo nesse sentido: “a maioria das pessoas não percebe que, quando olha o relógio repetidas vezes à espera do fim do dia, na verdade está a desejar que o tempo passe mais rápido e a sua morte se aproxime mais depressa”. Já parou para pensar por esse ângulo?


No filme Click, que se você ainda não conhece sugiro que assista, o personagem principal descobre uma espécie de controle mágico capaz de pular cenas, deixar as pessoas mudas ou acelerar o tempo. E ele não desperdiça essa chance mágica de controlar o mundo, as pessoas e deixar a realidade o mais próximo do que seria aceitável em sua concepção. Mas sua inconsequência se mostra trágica quando ele percebe que acelerou tanto as coisas que agora o seu pai está próximo da finitude e o tempo que eles têm para viverem juntos é quase inexistente. É uma história de ficção lançada bem antes dos recursos dos quais nos dispomos, mas ele se parece muito atual. Aposto que você já acelerou o áudio de alguém. Ou então, impaciente, colocou aquele vídeo na velocidade máxima. E, para ser franco, não me espantaria muito se você me dissesse que leu essa mensagem também de forma apressada. E não quero criticar esse comportamento apesar de considerá-lo equivocado. Nessa de acelerarmos as coisas nós não as aproveitamos de fato. Só que não quero entrar nesse mérito por enquanto. Quero trazer outro ponto para a nossa reflexão. Já estamos tão acostumados a acelerar o tempo que em breve, se é que já não acontece, estaremos diante de pessoas que chamamos de especiais pedindo para que falem mais rápido. Seremos indelicados. Estaremos sendo grosseiros. Mas além disso, estaremos agindo com ignorância e tolice. O tempo que queremos acelerar com as pessoas que amamos é um tempo que jamais voltará. E será um tempo que nos fará falta quando estivermos naquela cerimônia melancólica sendo obrigados a nos despedirmos de quem estará levando consigo uma parte importante de nós.

Pressa nos relacionamentos


A vida não é um áudio de WhatsApp ou um vídeo do YouTube para que seja apressada de forma inconsequente e irracional. O áudio, caso alguma parte seja incompreendida, permite que retrocedamos e o ouçamos novamente. O vídeo, quando no mesmo contexto, também nos dá essa possibilidade de retorno. Mas a vida não. Na vida tem coisas que acontecem e que nunca mais terão aquele mesmo valor mesmo que se repitam em outras ocasiões. O primeiro “eu te amo” que você ouvir da pessoa amada não terá o mesmo efeito que das demais vezes, ainda que continue sendo bom. O primeiro “papai” ou “mamãe” daquela criança querida também é único e excepcional. O pôr do sol, quando acompanhado com tranquilidade e respeito, é capaz de nos trazer inspirações profundas para o nosso viver. Uma reflexão como essa quando apreciada em seu próprio tempo pode nos fazer mudar de concepção diante da nossa existência ainda que não concordemos com tudo o que foi dito. A pressa leva de nós o que de mais valioso nos foi ofertado: existir. E no plano em que conhecemos, no tempo em que estamos e no espaço onde habitamos, só se existe uma vez. Não exista com pressa. Rápidos ou lentos chegaremos ao mesmo destino. A diferença é que a passos mais serenos teremos a chance de sermos contagiados pela beleza das paisagens.


Texto de @Amilton.Jnior.

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