[ESPECIAL] Quando a estrada começa a se apagar
Chegamos a esse mundo e nele escrevemos nossas histórias, imprimimos nossas marcas, garantimos que um pouco de quem somos e do que carregamos em nosso interior, de alguma forma, toque os corações das pessoas. Criamos experiências, vivências e através do nosso jeito de ser deixamos claro quem somos. Nossos comportamentos nos caracterizam, nossas teimosias arrancam sorrisos de quem nos ama, nossa rotina imutável deixa aqueles que nos conhecem sempre preparados para o próximo passo. “A poltrona de sempre. A caneca de costume. O horário religiosamente cumprido”. Coisas que ajudam a nos definir.
Mas os anos passam. A vida segue o seu fluxo. Seu ritmo. Ela voa.
Envelhecemos. O que é absurdamente normal embora tantos tentem se esquivar disso. Mas, diria um historiador, que o ser humano que envelheceu foi um jovem que deu certo¹. Envelhecer é uma dádiva, apesar de não considerarmos assim. É verdade. As juntas doem. As costas podem arder. E as pernas tão ligeiras de antes agora custam para sair do lugar. No entanto, apesar desses desconfortos de quando o tempo nos faz sentir a sua passagem, somos também presenteados pelas memórias daquilo que construímos ao longo da vida. Nossos netos podem se reunir ao nosso redor enquanto gargalham dos causos que lhes contamos. Pessoas mais jovens podem recorrer à nossa companhia porque veem em nós uma sabedoria que ainda não conquistaram: a sabedoria de anos experimentados. Envelhecer nos faz sentir que a vida foi vivida.
E envelhecer também pode significar que, aos poucos, mesmo em vida, deixaremos de ser quem um dia fomos.
O envelhecimento, infelizmente, pode ser cruel para alguns de nós e levar consigo as memórias que construímos. E isso pode começar de forma quase imperceptível. Leves esquecimentos. Troca de palavras. Dificuldade na concentração². E isso se agrava. Gradualmente. Silenciosamente. E quando nos damos conta já não conseguimos nos lembrar do nome de nossos filhos, aquelas pessoas tão especiais, que amamos antes mesmo de terem nascido, mas que agora são vistas como desconhecidas. É como se a estrada percorrida, aos poucos, fosse se apagando. A poltrona de sempre deixa de ser importante. A caneca de costume acaba esquecida. E o horário religiosamente cumprido fica bagunçado. Já não somos quem éramos.
Estou falando das demências, como a doença de Alzheimer, por exemplo, que se caracterizam, principalmente, pelo comprometimento provocado em funções cognitivas tais como memória, raciocínio lógico e julgamento³. Normalmente acometendo pessoas idosas, aquelas com mais de 60 anos de idade, as demências nos transformam aos poucos até que fiquemos em pessoas inteiramente irreconhecíveis até para nós mesmos.
Sendo incuráveis e progressivas, elas exigem um cuidado intenso e preocupado por parte de profissionais da saúde e familiares, a começar pelo feito de que, quando em estágios mais avançados, pode significar grandes riscos de integridade ao paciente por elas acometido, dada observação de que comportamentos perigosos passam a ser praticados. Aquele idoso, perdido em sua própria mente, confuso quanto à bagunça formada em seu cérebro, pode sair por aí, acreditando que está voltando para casa quando, na realidade, apenas anda sem direção, sem comando, dirigindo-se a destino algum.
A importância dessa discussão se apresenta na confirmação de que estamos envelhecendo! Não apenas individualmente. A população, a cada ano, envelhece mais um pouco. Apenas para dar uma noção a você, no ano 2000, 14,2 milhões de pessoas tinham mais de 60 anos. Em 2010 esse número saltou para 19,6 milhões e estima-se que até 2060 tenhamos 73,5 milhões de pessoas com mais de 60 anos vivendo em nosso país³. É uma boa notícia. A diminuição na mortalidade infantil e os avanços científicos que propiciam um alargamento na estimativa de vida tem tornado possível a ideia de que viveremos mais do que os nossos antepassados. Mas por outro lado, para o qual não gostamos de olhar, o envelhecimento possui características que em outros períodos da vida não se mostram como preocupantes.
Como conversamos até aqui, uma dessas características é a possibilidade do desenvolvimento de diversos tipos de demência. E a isso pode-se relacionar diversas causas. O doutor Adilson Silvestre², por exemplo, traz a reflexão de que nosso corpo pode estar envelhecendo mais lentamente, mas nosso cérebro pode não estar no mesmo ritmo. Além disso, ainda de acordo com o doutor, o acúmulo de metabólicos tóxicos no cérebro leva à diminuição do processamento de informação. Podemos, também, acrescentar que hábitos de vida prejudiciais, tais como uso de drogas e estresse, contribuem para as chances de aparecimento de demência nos anos vindouros. Escolhas no passado de juventude podem resultar em desafios no presente de velhice.
Nesse sentido, a adoção de hábitos saudáveis, o envolvimento em atividades sociais e a autoaceitação podem ser ótimas ferramentas para a prevenção das demências, bem como a garantia de uma boa reserva cognitiva a partir de estudos, do interesse por aprender e por práticas que façam nosso cérebro se exercitar tanto quanto exercitamos nossos músculos². Mas e quando o problema já está instaurado? E quando as prevenções já não são possíveis e tudo o que nos resta é conviver com o fato de que adoecemos e estamos perdendo nossa mente? O que fazer?
É quando podemos falar sobre Cuidados Paliativos (CP).
Em um primeiro momento, por desconhecimento, as pessoas podem ficar preocupadas com esse termo e acharem que a morte se encontra na próxima esquina. O que não é verdade. Muitas doenças são incapacitantes por anos e trazem muito sofrimento aos doentes por não terem uma cura definida, como é o caso de enfermidades oncológicas, perda de movimentos por acidentes e, como pontuamos por aqui, demências. Condições que fazem a pessoa perder significativamente a qualidade de vida de outrora, tendo que conviver com dores, angústias e impossibilidades. Os CP, portanto, aparecem como uma forma de aliviar o incômodo e ajudar na caminhada que ainda precisa ser feita.
Tendo como grande objetivo o bem-estar do paciente através da redução da dor e do sofrimento, os CP oferecem tratamentos que respeitam a autonomia do indivíduo e lhe fazem perceber que há ainda algo a ser apreciado³. Eles não possuem uma meta curativa, como a concebemos. Mas podem, com certeza, proporcionar um conforto para a alma porque as dores e os desconfortos provocados por tantas condições patológicas não são sentidas apenas no corpo, no físico, são, também, experimentadas na mente.
E aqui incluímos a família. Pode ser dramático para muitos familiares de pacientes paliativistas receber a informação de que, tradicionalmente, a medicina já não pode fazer muita coisa. Pode ser devastador saber que seu amado ou sua amada precisará conviver com algum desconforto incurável. Contudo, para que aquele paciente tenha uma realidade satisfatória apesar dos obstáculos que se lhe apresentaram, é necessário que aqueles que o cercam também estejam bem. É quando os CP os acolhem e mostram que o cuidado humanizado pode fazer aquilo que medicações e cirurgias não são capazes: proporcionar amor em momentos de dor.
Porque, ao menos para mim, e inspirado no que trouxe o doutor Adilson², oferecer CP envolve oferecer amor, afeto, compreensão e auxílio. É um momento de desolação. Imaginemos nós, saudáveis, vivendo a vida despreocupados, até que, de repente, algo acontece e retira de nós a possibilidade de continuarmos a desfrutar dos prazeres que tanto estimamos. O que fazer diante da impossibilidade de voltarmos ao que éramos? Ou de acreditarmos que ainda temos dezenas de anos bem à nossa frente? É arrasador. E só podemos suportar tais intempéries se sentirmos que somos tocados de forma humana. É o que os CP proporcionam: uma relação de humanidade! Tanto que muitos profissionais envolvidos com tais pacientes sentem profundamente quando estes se vão, porque viveram histórias, passaram por experiências, compartilharam momentos que ficarão para sempre registrados na memória.
Portanto, retornando ao assunto que abriu o texto, sendo as demências incuráveis e progressivas em seu curso, o que fazer? É quando direcionamos nosso olhar aos CP com foco em qualidade de vida e respeito ao sujeito humano. Ferramentas são utilizadas nesse momento, como medicações (para os casos nos quais há essa possibilidade), tratamento de comportamentos (alguns pacientes podem se tornar agressivos ou apáticos, por exemplo, podendo adotar práticas nunca antes habituais), fisioterapia relacionada às questões motoras, fonoaudiologia para manejo da linguagem prejudicada, reabilitação cognitiva com exercícios que estimulem o cérebro e retardem o avanço da doença e, talvez um dos pontos principais, oferecimento de suporte emocional à família.
E eu gostaria de frisar esse último ponto porque muitos pacientes com demência, aos poucos, vão se tornando cada vez mais dependentes de seus familiares ao ponto de se tornarem completamente necessitados de cuidadores constantes. E isso pode ser desgastante aos envolvidos. Tanto física quanto emocionalmente. No entanto, se houver um suporte bem pensado e planejado, com esclarecimentos acerca do problema e recomendações sobre o que fazer e quais decisões tomar em momentos de necessidade, a realidade pode ser bem mais tranquila e saudável.
Por outro lado, pode ser doloroso ver aquele parente querido se perder de si mesmo, deixar de reconhecer lugares antes amados, esquecer-se de datas antes importantes, olhar-se no espelho e se revoltar por não conseguir saber quem é. Pode ser doloroso para uma filha, em um dia qualquer, quando menos se espera, ver os olhos avermelhados do pai dirigidos a si e sua voz trêmula fazer a indagação: quem é você? E por mais que tentemos afirmar a nós mesmos que aquilo é manifestação da doença, dói saber que precisaremos aprender a reconhecer, dia após dia, alguém de quem fomos tão próximos.
O envelhecimento é uma dádiva, mas também pode ser cheio de desafios. Com a população envelhecendo e a expectativa de vida aumentando a cada ano, é necessário que direcionemos olhares sobre o futuro, sobre como estamos nos preparando para lidar com as demandas de um tempo que se aproxima. Esse olhar deve ter uma perspectiva individual, é claro, mas, sobretudo, precisamos pensar, em sociedade, estratégias que visem à qualidade de vida e à promoção de saúde. Os Cuidados Paliativos, com sua filosofia de respeito à existência e autonomia humanas, podem ser ótimos aliados na luta contra o sofrimento aparentemente incurável, mas, para isso, precisa ser conhecido, divulgado e assimilado. Só assim teremos condições de entender que a sentença “não há mais nada a ser feito” pode, na verdade, estar dizendo que agora só as feridas na alma podem ser tratadas – e para cuidar da alma de alguém, parafraseando Carl Jung, precisamos, nós, sermos também uma alma.
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(¹) Pensamento do historiador Leandro Karnal
(²) Referência ao episódio Demências e Cuidados Paliativos do podcast Insight Psicologias (ouça aqui)
(³) Referência ao artigo Cuidados paliativos à pessoa idosa com demência: sentimentos emergentes com reflexões bioéticas; escrito por Rogério D. Reis, Ana M. G. Andrade e José V. da Silva; publicado no número 12 da Revista Iberoamericana de Bioética no ano de 2020
Esse texto foi escrito por @Amilton.Jnior.
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Gostei aconteceu comigo a minha mãe perguntou quem é você dói muito
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