[ESPECIAL] A supressão da agressão e o caos no mundo

 

Caos e agressão

Convencionamos considerar a agressão, a energia agressiva presente em todos nós, como algo que serve apenas à destruição, ao aniquilamento, à ruína. E com isso podemos, enquanto sociedade, cogitar que a solução para a paz no mundo passe pela ideia de repressão da agressão, o que fica bastante notório na forma como nossas crianças são educadas no sentido de terem suas manifestações e expressões agressivas reprimidas, corrigidas, punidas. Elas não podem gritar, não podem pular, não podem correr. Não podem questionar, não podem criticar, não podem dizer não. Precisam ser dóceis e educadas. Precisam atender a expectativas injustas de adultos que, incapazes de lidar com aquilo que lhes questiona e indaga, tratam de silenciar o questionamento e a indagação.


Laura Perls, no entanto, em seu livro Living at the boundary, coloca que basta que olhemos para a sociedade que nos cerca e compreenderemos que essa ideia de supressão da agressividade de nada adianta. A sociedade tem se constituído e construído nessa lógica de repressão das expressões agressivas, mas as guerras continuam acontecendo, mortes continuam ocorrendo, barbaridades cometidas por humanos contra outros humanos continuam sendo noticiadas todos os dias. Isso porque entendemos a agressividade por uma lógica errada.


A autora nos ajuda a entender que a energia agressiva é o que nos impulsiona a sair pelo mundo em sua descoberta. É pela agressão que mastigamos aquilo que se coloca em nosso caminho para que, em um processo de assimilação, possamos concluir se aquilo nos é nutritivo ou prejudicial. Se, no entanto, somos impedidos em nosso uso da agressividade, como assimilarmos aquilo que a nós se apresenta? Qualquer coisa é aceita, qualquer coisa cria ninho em nós, perdemos nossa capacidade de questionar e indagar, perdemos, com isso, nossa capacidade de desbravar o mundo em busca de nossas próprias respostas.


Ficamos, assim, suscetíveis a meramente aceitarmos qualquer tipo de influência, visto que fomos afastados de nossa capacidade de discriminar o mundo e, portanto, apreendê-lo. Crianças reprimidas em suas expressões agressivas transformam-se em adultos sem capacidade de curiosidade, de formular questionamentos que auxiliam no desenvolvimento de um pensamento crítico. Sem um pensamento crítico fortalecido, acabam presas fáceis de quaisquer ideologias verdadeiramente violentas, subjugadoras, opressoras: caóticas ao mundo!


Laura Perls, nesse mesmo texto, também nos faz lembrar do fato de que aquilo que é da ordem do espontâneo não pode, em si, ser reprimido. Não dá para evitar desfrutar da tristeza. Assim como não podemos evitar de sentir o nojo. Logo, a agressividade também não pode ser meramente suprimida. O que acontece é a repressão das expressões e manifestações de nossas emoções, daquilo que sentimos e experimentamos. Somos calados e somos imobilizados. Por medo ou pelo desejo de sermos aceitos, aprendemos a silenciar aquilo que sentimos, embora continuemos a sentir. Mas de alguma forma essa energia reprimida, que ainda existe, precisa sair.


Surgem, assim, os adoecimentos neuróticos, que são nossas formas repetitivas e disfuncionais de viver, fazendo sempre o mesmo, temendo a novidade, impedindo-nos de nos desenvolvermos em nossos potenciais ou mesmo voltando esse acúmulo de tensão contra nós mesmos na forma de doenças que se manifestam no corpo ou mesmo comportamentos que nos provocam lesões. Surgem, ainda, aqueles comportamentos que se voltam de maneira tortuosa e sem reflexão contra a sociedade em parte repressora e que abalam os acordos de convivência. Em resumo, como a autora esclarece, a supressão da agressão individual eclode a agressão universal.


Então, o que fazer?


O primeiro e importantíssimo passo deve ser o de atualizar nossa compreensão sobre o que vem a ser a agressão. Sim, ela pode ser utilizada na forma de violência para a destruição e para o aniquilamento, mas também pode ser utilizada como uma forma de nos colocarmos no mundo a fim de conhecê-lo, descobri-lo, desbravá-lo. E com isso Laura Perls nos propõe que a questão não se coloque em reprimir ou não a agressão, mas que a transformemos em instrumento valioso para as nossas vidas.


Sendo assim, que através de nossa ação agressiva no mundo, compreendendo-a como aquilo que nos move no sentido de nos apropriarmos da nossa existência, mastigarmos as informações do mundo e assim assimilarmos aquilo que nos é apresentado, tenhamos de volta nossa curiosidade e nossa capacidade de indagarmos e questionarmos. Que asseguremos às crianças a possibilidade de manipularem o mundo, agirem sobre ele e transformá-lo. Que lhes permitamos que sejam curiosas e “perguntadeiras”. Sim, que ofereçamos contorno ao que é permitido ou não, mas que não fiquemos apenas na imposição de regras e limites, mas que sejamos capazes de lhes apoiar no sentido de ajudá-las a encontrar formas alternativas de expressar aquilo que sentem em meio às limitações do mundo que as cerca. Porque crianças capazes de serem curiosas e aceitas em suas indagações, transformam-se em adultos confiantes na sua própria capacidade de ir ao encontro de respostas e não mais ficam condicionadas ao que os outros têm a dizer. Livres desse condicionamento, têm condições de criar o próprio caminho, avaliar as circunstâncias no mundo e não aceitá-las meramente porque “sempre foram assim e pronto”, mas na medida em que lhes fizerem sentido.


Acima de tudo, que nós, enquanto adultos, possamos refletir sobre o uso de nossa própria agressividade e como ela se foi se desenvolvendo em nós ao longo da vida. Talvez tenhamos sido aprisionados naqueles “bons modos” que nada mais foram do que formas de cercear nosso senso crítico, nossa curiosidade e nossa capacidade de criar nossa própria história. Mas que agora, grandinhos, recuperemos nossa capacidade de formular perguntas e que comecemos a questionar a nós mesmos: vivemos como a vida nos aprouve ou vivemos a partir de um script que nos entregaram? Talvez precisemos rasgar alguns roteiros. Talvez precisemos resgatar nossa agressividade.


(Texto de Amilton Júnior - @c.d.vida)


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